Lula & Collor: Uma aliança contra a imprensa


A tentativa dos ex-presidentes de transformar a CPI do Cachoeira num cerco à imprensa exige uma reflexão sobre o lado obscuro das campanhas eleitorais
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Lula montou “governo paralelo” contra o então presidente Collor, que, hoje, é seu aliado na guerra contra a imprensa
José Maria e Silva 
Ao ser indicado por seu partido para integrar a CPI Mista do Cachoeira, o senador Fernando Collor (PTB-AL), recordando o estilo grandiloquente que caracterizou sua meteórica passagem pela Pre sidência da República, fez um solene pronunciamento no Senado, na sessão de 25 de abril último, quando antecipou as diretrizes de sua atuação no curso da investigação parlamentar que se iniciava. Referindo-se aos jornalistas como “confrades”, pelo fato de ter exercido a profissão durante breve período, Collor começou defendendo a legalidade, mas terminou cortejando a censura. “Minha atuação estará integralmente dedicada a garantir a independência e a harmonia dos Poderes e a procurar impossibilitar a interferência nas apurações e nos trabalhos do Con gresso, durante todo o processo investigativo”, afirmou.
O senador petebista disse que não deixará o colegiado se transformar em “mero palco para a vileza política e um campo fértil de desrespeito aos mais elementares direitos constitucionais dos homens públicos ou de qualquer cidadão brasileiro”, muito menos irá permitir que, em plena democracia, a comissão transforme-se num tribunal de exceção.
“Meu foco estará, portanto, voltado para que não ocorra uma violação ao texto constitucional ou qualquer deturpação da lei, das normas regimentais e ao devido processo legal, a começar pelo rigor na garantia fundamental da ampla defesa, do contraditório e do pleno acesso aos autos a quem de direito”, enfatizou o ex-presidente da República, acrescentando que ficaria alerta para evitar o vazamento de informações sigilosas e protegidas pela Constituição.
Até aí nenhum reparo poderia ser feito ao discurso de Fernando Collor. Ocorre que esse preâmbulo de alto teor republicano, ancorado nos direitos e garantias individuais, logo resvalou para uma espécie de vingança tardia do ex-presidente. Depois de dizer que tentaria evitar que “certos meios se prestem a agir como simples dutos condutores de notícias falsas ou manipuladamente distorcidas” e que “se utilizem de ações e métodos desonestos e repulsivos para escamotear a realidade dos fatos e burlar a lei”, Collor atacou diretamente a imprensa: “Não é admissível, num País de livre acesso às informações e num Governo que preza pela transparência pública, aceitar que alguns confrades, sob o argumento muitas vezes falacioso do sigilo da fonte, se utilizem de informantes com os mais rasteiros métodos, visando ao furo de reportagem, mas, sobretudo, propiciar — esse é o objetivo — a obtenção de lucros, lucros e mais lucros a si próprios, aos veículos que lhes dão guarida e aos respectivos chefes que os alugam”.
Ataques a revista
Collor chegou a comparar jornalistas a criminosos: “Diferentemente da delação premiada, essa prática daninha e pérfida acaba por acoitar e deixá-los livres, tanto uns quanto outros, verdadeiros criminosos e fraudadores, num autêntico processo de coabitada impunidade”. E afirmou que o Reino Unido “vem dando uma demonstração exemplar de combate a esse tipo de comportamento deletério”, referindo-se ao caso do jornal “News of the World”, do magnata australiano, naturalizado americano, Rupert Murdoch. O jornal foi acusado de fazer reportagens com base em grampos ilegais. Entre as vítimas desses grampos estavam desde pessoas comuns até membros da realeza, além de celebridades. Após mencionar o caso do jornal britânico, Collor disse que iria trabalhar para que “a agenda desta CPMI não seja pautada pelos meios e alguns de seus rabiscadores”.
No dia 7 de maio, Fernando Collor voltou a ocupar a tribuna para se pronunciar sobre sua participação na CPI. Desta vez para acusar setores da imprensa de terem deturpado seu pronunciamento anterior. O ex-presidente disse desaprovar “qualquer tentativa de controle dos meios de comunicação, a começar pela regulamentação do exercício profissional do jornalismo e a possibilidade de criação de um conselho de fiscalização” e afirmou que, mesmo quando esteve na condição de investigado, jamais promoveu qualquer tipo de cerceamento da liberdade de expressão. Collor aproveitou para pedir que fosse anexado ao seu discurso, nos anais do Senado, o editorial “Trevas ao Meio-Dia”, da revista “Carta Capital”, em que o editor Mino Carta comparava a “Veja” de Roberto Civita ao “News of the World” de Rupert Murdoch. A resposta de “Veja” foi dada na edição de 16 de maio. Em editorial e reportagem, a revista chamou Collor de “office-boy do partido que ajudou a tirá-lo do poder” e classificou o governo Collor de “cleptocracia”.
O contra-ataque do ex-presidente foi deflagrado na sessão do Senado de 21 de maio. Citando os jornalistas Alberto Dines e Luis Nassif e até um professor de jornalismo paranaense, Tomás Barreiros, mestre em Comunicação, Collor negou que estivesse tentando cercear a liberdade de imprensa e disse que seu objetivo era “simplesmente tentar investigar as relações da revista “Veja” com o crime organizado”, pois, segundo ele, a revista “vem há quase dez anos mantendo escusas e suspeitas relações com uma organização criminosa, por meio de troca de informações, por meio de troca de favores, por meio de tráfico de influência”. Para Collor, “Veja” só pensa em dinheiro e se tornou um “autêntico cassino, uma verdadeira sala de bingo, onde suas seções são usadas como máquinas de caça-níqueis”. E finalizou, equiparando “Veja” à máfia italiana: “Não é de hoje que venho denunciando fatos, personagens e atitudes comandadas pelo Sr. Roberto Civita, o ‘capodecina’, e seu ‘capo’ em Brasília, Sr. Policarpo Júnior”.
Os inimigos aliados
Com seu ataque à revista “Veja”, Fernando Collor torna-se o maior aliado de Luiz Inácio Lula da Silva na CPI do Cachoeira. O que não deixa de ser um desses paradoxos que a história nos reserva, pois a disputa entre Collor e Lula, em 1989, talvez tenha sido uma das mais acirradas de toda a história da República, como se fossem não dois adversários políticos, mas dois inimigos pessoais. O fato de ter sido uma eleição isolada, sem a concorrência das eleições estaduais, fez com que toda a atenção do país se voltasse para a campanha presidencial, isso numa época em que as regras da legislação eleitoral eram bem mais flexíveis que as de hoje, facilitando os ataques entre candidatos.
No programa eleitoral de Collor, no segundo turno, Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula, contou que, quando grávida do então líder metalúrgico, ele quis que ela abortasse. Em resposta, Lula apareceu na TV com a própria filha, Lurian Cordeiro, dizendo que não lhe interessava o julgamento do adversário nem da ex-namorada e, sim, da própria menina, então com 15 anos.
Uma vez eleito, Fernando Collor teve de enfrentar a oposição sistemática do PT. Na época, o partido liderou o movimento pela “ética na política”, que, ao lado do “governo paralelo” criado por Lula, promoveu um cerco permanente ao governo Collor — contando, para isso, com a simpatia de amplos setores da imprensa. Se José Serra e o PSDB tivessem criado um “governo paralelo” após a derrota de 2002, obviamente seriam tratados como verdadeiros terroristas políticos, tentando desestabilizar o governo do PT. Mas Lula, que sempre gozou de certa inimputabilidade junto aos formadores de opinião, pôde confrontar a maioria dos brasileiros que elegeu Collor na primeira eleição direta para presidente após a redemocratização. Foram 22,6 milhões de votos no primeiro turno e 35 milhões no segundo, contra 11,6 milhões e 31 milhões de Lula, respectivamente.
Sua sorte é que o PT não dispunha da força que tem hoje, tanto que não contava com nenhum senador quando Collor tomou posse. O primeiro e último até então, tinha sido Henrique Santillo (1937-2002), que, em 1980, quando senador por Goiás, teve uma meteórica passagem de oito meses pelo PT. Eduardo Suplicy ainda era vereador por São Paulo e só conquistaria seu primeiro mandato de senador em 1990, assumindo no início de 1991, justamente quando o governo lançava o Plano Collor II, remendo malfeito do fracassado Plano Collor, em meio a uma inflação de 20% ao mês. Era a derrocada do governo Collor, que começou na esfera econômica – com o irresponsável confisco da poupança – e terminou na esfera política, com o Parlamento indócil e os jovens de caras pintadas nas ruas, até por influência da minissérie “Anos Rebeldes”, da Rede Globo, que recriou o clima de contestação no país.
Invasão de jornal
O governo Collor acabou sendo uma crônica policial contada pela imprensa a partir dos caminhos e descaminhos de Paulo César Farias, empresário e tesoureiro da campanha de Collor, com grande influência em seu governo. E seu atritos com a imprensa não tardaram. Em 23 de março de 1990, apenas oito dias depois de Collor ter tomado posse, seis fiscais da Receita, juntamente com dois agentes e um delegado da Polícia Federal, fizeram uma diligência na sede da “Folha de S. Paulo” para averiguar se o jornal estava cobrando os anúncios publicitários em cruzados novos ou em cruzeiro, a moeda criada pelo novo governo. A medida partiu da então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, e teve a anuência do próprio presidente. Segundo a “Folha”, as equipes da Receita e da Polícia Federal tentaram intimidar a direção do jornal, que reagiu, no outro dia, com o editorial “Escalada Fascista”, comparando Collor a Mussolini e Ceaucescu, o ditador comunista da Romênia que havia sido fuzilado três meses antes desse episódio.
Em agosto, Collor abriria um processo contra jornalistas da “Folha” devido a uma nota em que seu governo era acusado de contratar agências de publicidade sem licitação. Esse processo se arrastaria na Justiça, levando o diretor de Redação, Otavio Frias Filho, a publicar um editorial de primeira página, em 25 de abril de 1991, acusando Collor de perseguir o jornal. Antes disso, já em outubro de 1990, surgiram indícios mais contundentes da influência de PC Farias no governo. O presidente da Petrobras, Luís Otávio da Mota Veiga, demitiu-se do cargo, denunciando pressões de Paulo César Farias e do secretário-geral da Presidência República, Marcos Coimbra, embaixador e cunhado de Collor, para que fizesse um financiamento vultoso e sem cobrança de juros à empresa aérea Vasp. Em meio às muitas denúncias que atingiram o governo, nem a primeira-dama Rosane Malta escapou: além da violência política associada à família Malta, em Alagoas, a LBA (Legião Brasileira de Assistência), sob seu comando, foi acusada de superfaturar cestas básicas, levando mais desgaste ao presidente, como se já não bastasse o confisco da poupança.
Mas foi o caso PC Farias que selou o fim do governo Collor. O empresário alagoano, tesoureiro de campanha, raramente era visto com o presidente, mas sua presença pairava como uma sombra no governo. E essa sombra começou a se desmanchar, vindo à luz como realidade inconteste, a partir de reportagens da revista “Veja”, baseadas em denúncias de Pedro Collor, que culminaram com uma bombástica entrevista do irmão do presidente, publicada em 27 de maio de 1992. Em sua edição anterior, a revista estampara na capa a soturna imagem de PC Farias, confrontando suas franciscanas declarações de imposto de renda com a vida milionária que levava. Segundo um especialista ouvido pela revista, a declaração de renda do tesoureiro de campanha de Collor lhe garantia uma renda mensal menor do que dos pilotos de sua empresa de táxi aéreo, o que, obviamente, era insuficiente para explicar todos os seus bens e ostentações, que incluíam apartamentos, casa de praia e viagens ao exterior.
Caixa dois de campanha
As investigações da Polícia Federal sobre a trajetória de PC Farias, realizadas durante quatro anos, entre maio de 1992 e maio de 1996 resultaram em 267 mil folhas numeradas, divididas em 38 volumes com 1.088 apensos. Esse trabalho foi produzido pela equipe do delegado Paulo Lacerda, que ouviu cerca de uma centena de pessoas, desde traficantes de drogas até os maiores empresários do país. É o que conta o jornalista Lucas Figueiredo, autor do livro “Morcegos Negros” (Editora Record, 2000), que faz um balanço das apurações das autoridades no Brasil e no exterior sobre o esquema PC Farias, além das investigações que ele próprio fez como repórter da “Folha de S. Paulo” na época. O que se depreende do relatório da Polícia Federal é que o financiamento ilegal de campanhas eleitorais é uma prática antiga no país. PC Farias é uma espécie de Marcos Valério da Era Collor, fazendo pelo líder da República de Alagoas o que o publicitário mineiro fez pelo comandante da República do ABC. Talvez com mais truculência, pois os tempos eram outros e a política de Alagoas ainda trazia resquícios do cangaço de Lampião.
Segundo o relatório do delegado Paulo Lacerda, durante a campanha eleitoral de 1989, PC Farias pedia dinheiro aos empresários exorcizando Lula, sob o argumento de que Collor precisava de apoio para ganhar a eleição e afastar o risco de uma vitória do “Sapo Barbudo”, como Lula era chamado por Leonel Brizola – outro espectro anticapitalista que esteve perto de disputar o segundo turno com Collor. Quando o exorcismo ideológico não sensibilizava os empresários, o tesoureiro partia para o achaque, ameaçando os empresários com dificuldades para conseguir liberação de verbas junto ao governo federal. Empresas de fachada do esquema PC Farias emitiam notas frias para legalizar as doações, que eram depositadas em 24 contas de fantasmas ou laranjas. Apenas parte do dinheiro foi aplicada na campanha eleitoral. As sobras foram desviadas para 15 contas no exterior ou para custear despesas de Collor e sua família, além de assessores mais próximos. É o que consta do relatório da Polícia Federal, citado no livro “Morcegos Negros”.
PC Farias conhecera Fernando Collor em 1984, quando – às voltas com sucessivos fracassos em sua vida empresarial – se tornou tesoureiro regional da campanha de Paulo Maluf a presidente, candidato que o jovem Fernando Collor também apoiava, contra Tancredo Neves, no Colégio Eleitoral. A amizade cresceu e, em 1986, Collor convidou PC Farias para ser o tesoureiro de sua campanha ao governo de Alagoas. Finda a campanha vitoriosa, PC Farias emplacou o irmão, Augusto Farias, na Secretaria de Obras do Estado de Alagoas. Suas empresas continuavam em má situação, tanto que ele foi impedido pelo Banco Central de operar com crédito rural. Mas a proximidade com o poder era sua tábua de salvação, especialmente porque Collor resolveu se lançar candidato a presidente e lhe confiou novamente o papel de tesoureiro da campanha.
Crimes duvidosos
Segundo Lucas Figueiredo, com Collor na Presidência da República, PC Farias conseguiu indicar pessoas de sua confiança em cargos estratégicos do governo: o próprio irmão, Luiz Romero Farias, na secretaria executiva do Ministério da Saúde; Lafaiete Coutinho na presidência da Caixa Econômica Federal e um diretor da construtora Tratex na Secretaria de Transportes. “Naquela época, dinheiro não era mais problema para PC. Ele tinha conseguido reunir o suficiente para abrir contas em bancos da América do Sul, do Caribe, da Europa e dos Estados Unidos, comprar um jato avaliado em 10 milhões de dólares, o famoso ‘Morcego Negro’, e se preparava para montar um jornal em Maceió, a ‘Tribuna de Alagoas’, um investimento de 5 milhões de dólares”, relata o autor de “Morcegos Negros”. E foi esse último empreendimento que pôs tudo a perder. Pedro Collor, dono de jornal em Alagoas, viu-se ameaçado pelo amigo do irmão presidente e partiu para o ataque, escancarando o esquema de PC Farias.
A partir daí, a crônica política dá lugar à crônica policial. A exemplo do que ocorreu com o provável esquema de Celso Daniel — o prefeito de Santo André tido por seus próprios irmãos como arrecadador-mor das campanhas eleitorais do PT —, não faltaram cadáveres na efêmera história nacional da República de Alagoas. A começar pelo próprio PC Farias, assassinado na madrugada de 23 de junho de 1996, em sua casa de praia em Guaxuma. Dividindo a cama em que seu corpo foi encontrado, estava outro cadáver: o de sua namorada, Suzana Marcolino, que, segundo o legista Badan Pa lhares, da Unicamp, foi quem o matou, suicidando-se em seguida. Mas a exemplo das dúvidas que cercam o caso Celso Da niel (em torno do qual perfilam mais sete cadáveres), a tese de que a morte de PC Farias foi um crime passional dei xou muitas dúvidas. Começando pelo fato de que a ce na do crime não foi preservada e os legistas que se debruçaram sobre o caso jamais chegaram a um consenso sobre ele.
PC Farias se encaixava no perfil do candidato a queima de arquivo, pois tinha ligações até com a máfia internacional. Fugiu do país em 30 de junho de 1993, um dia antes de ter sua prisão decretada, e foi preso em Bangkok, na Tailândia, em 29 de novembro do mesmo ano, sendo deportado para o Brasil. Pouco antes da fuga, em maio, abrira uma conta em Roterdã, na Holanda, abastecida no mês seguinte com 2,1 milhões de dólares da máfia calabresa. Em outubro de 1996, já depois de sua morte, procuradores italianos vieram ao Brasil, em missão sigilosa, tratar desse assunto. Em março do ano seguinte, o caso foi reaberto e foi a vez de uma comitiva da Polícia Federal e do Ministério da Justiça ir à Itália. No fim, ninguém foi condenado pela Justiça, o que leva Collor a dizer sobre o esquema PC o mesmo que Lula diz a respeito do mensalão: que tudo não passou de uma armação da imprensa. Somente PC Farias e Celso Daniel talvez pudessem confessar o contrário — e desfazer a dúvida que tende a permanecer para sempre.

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